UA-119529251-1 Transmutação da carne | leporello
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Pavillion/ Transmutação da carne em Frankfurt

Rituais de purificação, exorcismo e transmutação de Ayrson Heráclito em Frankfurt

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Um dos maiores expoentes atuais das artes plásticas brasileiras, Ayrson Heráclito, desembarcou em Frankfurt (Alemanha) para encenar três performances baseadas em sua relação de longa data com o candomblé e o legado da escravidão no Brasil colonial. 

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“Sacudimento”, “Buruburu” e “Transmutação da carne” foram apresentadas no festival afro-brasileiro “A vida é arte” do Weltkulturen Museum e contaram não somente com a assistência do público local, mas também com sua participação ativa para conferir cor, olor e corpo a esses rituais. Para aqueles que perderam as performances ao vivo, há, no entanto, a possibilidade de repescagem: até o dia 26 de agosto é possível vê-las integrando a exposição “Entre terra e mar – A arte transatlântica” como instalações de videoarte, fotografia e objetos.

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Empatia e comoção diante das feridas da escravidão

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Nessa mostra, Heráclito, considerado um dos artistas mais representativos da diáspora africana no continente americano, compartilha o espaço do museu alemão com o contemporâneo português Rigo 23, que baseou seu trabalho na cultura guarani presente na costa brasileira. Por sua vez, o baiano natural de Macaúbas levou à capital do euro tanto a  herança cultural do atlântico negro pré-colonial quanto rituais de purificação e transmutação das feridas da escravidão africana em solo brasileiro. No entanto, ao encenar tais rituais ao vivo e com a participação ativa do público, Heráclito logrou romper a áurea intimidante e “quase sagrada” que possuem as obras de arte, transferindo-as e integrando-as ao tempo e espaço dos presentes. Isso possibilitou a geração imediata de uma conexão, empatia e comoção dos visitantes com seu projeto. 

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Todos nós somos parte dessa história

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Para a curadora da mostra e do festival no Weltkulturen Museum, Mona Suhbier, essa participação do público e a comoção provocada pelas performances ao vivo de Ayrson Heráclito foram essenciais para o surgimento natural da pergunta, cada vez mais atual, entre os presentes “O que significa ser um escravo e viver como um?”. Outro fator a ser destacado foi a fomentação da familiaridade do público local com o candomblé e a brutalidade da política escravocrata no Brasil colonial - temas praticamente desconhecidos na Alemanha. Ainda que, “aqui, assim como em todos os outros Estados europeus, houve o benefício político, econômico, além da apropriação de cultural e de saberes das colônias na África. Por isso, temos sim uma responsabilidade sobre os acontecimentos do passado, assim como os do presente. Nós todos somos parte dessa história”.

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Heráclito, que em 2017 representou o Brasil na 57ª Bienal de Arte de Veneza, conduziu o público visitante à imersão em três rituais ligados à cultura do candomblé e dos africanos escravizados em solo brasileiro: “Sacudimento” (com folhas sagradas do culto do candomblé, o artista purificou as salas do museu das energias negativas do passado); “Buruburu” (um outro ritual de limpeza espiritual, sendo este a dos visitantes através de um “banho” de pipoca – alimento sagrado para Omulú, o orixá purificador e protetor dos enfermos) e “Transmutação da carne” (a mais emocionante e sensorial das encenações que, em 2015, foi selecionada por Marina Abramović para ser apresentada em São Paulo).

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Um ritual de exorcismo pela transmutação da carne

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“Transmutação da carne” foi encenada pela primeira vez há exatos dezoito anos no Instituto Cultural Brasil-Alemanha em Salvador e teve como respaldo artístico a influência do alemão Joseph Beuys para apostar em uma arte social calcada na ação e no ritual através da organicidade dos materiais escolhidos. Embora Beuys tenha se voltado para o xamanismo, Heráclito se conectou à inteligência pré-colonial do candomblé herdada pelo Atlântico negro que, segundo ele, “É um patrimônio importantíssimo que traz o conhecimento de uma África antes da colonização.”

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Essa performance, que se assemelha a rituais de sacrifício da Grécia Antiga, traz os atores performers vestidos com coletes de carne de charque caminhando em filas em silêncio e conduzidos vagarosamente por Heráclito. Parados um adiante do outro, sempre em silêncio e com fortes expressões no olhar, esses atores têm o vestuário orgânico marcado por ferro em brasa pelo artista num espetáculo que chega a todos os presentes pelos mais diversos sentidos: pelo olor apetitoso da carne queimada, pelo som da brasa em contato com a carne, pela coloração avermelhada da brasa, pelo choro inevitável diante daquela memória coletiva.

 

“Quando comecei a me dedicar à temática do colonialismo e da escravização, iniciei minha pesquisa utilizando materiais orgânicos para trabalhar o conceito de um corpo histórico nacional. Esse corpo afro-brasileiro tinha que ser concebido, justamente, da carne de charque: uma carne de refugo, resistente e que sobreviveu a todas as mazelas, torturas e barbáries da escravidão. Essa carne se tornou, assim, uma metáfora para esse corpo cultural do afro-brasileiro que eu busco retratar. A marcação com ferro em brasa é necessária para termos presente essa ferida de nosso passado: assim eram marcados os corpos de africanos no Brasil com os monogramas dos senhores de escravos”, observa o artista.

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Para Heráclito, essa performance simboliza uma transmutação ritualística da carne em um importante exercício de exorcismo do passado que deve ser recordado para não voltar a se repetir. “Temos de evocar e tornar essa memória presente, mas não com o objetivo de ficarmos tristes, impotentes ou de simplesmente apontarmos vítimas ou responsáveis. Pelo contrário, esse exorcismo serve para transpor essa etapa, para refletir o que cada um pode fazer hoje para que essa barbaridade não volte a ocorrer”.

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A marca da ferida provocada nessa carne simbólica evoca traumas de nossa memória histórica coletiva que nunca desaparecerá, segundo o artista. “Aprendi com Joseph Beuys que temos de conviver com nossas feridas. Não podemos curá-las totalmente porque essas fissuras, que a história e o passado nos legaram, precisam estar sempre presentes e relembradas. No caso do Brasil, os traumas da colonização e da escravidão são muito violentos. Além disso, há coisas que não podem ser corrigidas e temos que conviver com essa marca em nossa carne, em nosso corpo cultural”, finaliza Heráclito.

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Observações: ​

  • Todas as fotos deste texto foram tiradas por Renata Martins durante a performance "Transmutação da carne" de Ayrson Heráclito no Weltkulturen Museum de Frankfurt.

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